Não era bem o cheiro da avó ... que atravessava o corredor, a sala e depois os quartos e como que um despertador de todos os sentidos nos acordava daquele mundo onírico, onde tardiamente nos tínhamos embrenhado. Numa casa onde as janelas se estendiam envidraçadas numa marquise de relíquias, não era o trautear da avó que nos fazia saltar da cama com ar desgrenhado e desleixado, sem calçar os chinelos, correr pela casa com o nariz em ponta afiada e incisiva, como se não soubesse de onde vinha e simplesmente a deixar-se conduzir. Não era o tic-tac do seu relógio de parede que fazia crescer no lugar dos olhos dois globos brilhantes e reluzentes, que desejavam de uma só vez ver todo o universo sem dar a volta em 80 dias. Também não eram os seus passos pesados e apressados como se o chão não conhecesse o seu peso, que nos faziam sentir como pulgas saltitantes e enérgicas na idade dos porquês (que nunca deixou de o ser), desejosas por se enrolarem no avental enquanto rasavam com o dedinho indicador a taça com recheio de bolo.
Num tempo que merecia a eternidade e um jornal diário, não era o olhar da avó que nos fazia emergir como super-heróis, de collants pingões na ponta do pé e capa estrelar semelhante a um roupão, dos esconderijos, grutas e casernas de roupeiros munidos de espadas e escudos contra o tédio, a rotina e as conversas fastidiosas. Podia mas... não era o seu ar generalesco matriarcal de galões cozidos a sangue frio no coração de manteiga que trazia a peito, que nos alinhava como que em formatura na hora de desvendar o mistério do jarrão partido em pleno corredor, e posteriormente colado a UHU debaixo de uma secretária sob pacto de silêncio da frateria.
Mesmo quando sol desafiava as ripas do estore e o calor pedia uma sesta quase sempre mal vista e vilã, não era o shiuuuuuuu da avó que nos fazia desejar que uma brisa do quintal trouxesse o seu sono pesado na frente e a fizesse render na poltrona com o comando na mão por breves instantes, enquanto aquele rés do chão frente em pleno Areeiro se transformava num castelo de lego maciço onda as escadas eram escorregas e as janelas buracos de canhão.
E quase se poderia acreditar que era...mas não era! Não era a sua gargalhada que se disparava sobre a boca doce ao mínimo escopo, que despoletava nos corpinhos pigmeus mas sãos, com tantos trejeitos e tiques apanhados no autocarro genético, uma sede de viver cada riso e gargalhada como se por estes fossem engolidos.
Não! Não era!
Porque com os calendários amarelados da passada inimputável do tempo conferimos que não era o cheiro, o trautear, o relógio, os passos, o olhar, o ar, o shiuuuu ou a gargalhada que nos faziam ser como eramos, tal como somos...plenos de felicidade, riqueza e história. Claro que não era nenhuma destas coisas que como poção magica nos enfeitiçou e aprimorou. Era Ela, sempre ela na sua máxima forma de viver projectada em nós, nos sonhos que desenhava no nosso futuro, nos defeitos e feitios tão únicos e tão seus também...nos netos que éramos para a avó que ela foi.
Talvez a melhor forma de agradecermos às nossas avós seja reviver e manter os capuchinhos vermelhos que ainda somos a vaguear pelo bosque com um cesto cheios de biscoitos que não passam do prazo e têm sabor a mil e um colos e dezenas de mimos.
Talvez a melhor forma de agradecermos às nossas avós seja reviver e manter os capuchinhos vermelhos que ainda somos a vaguear pelo bosque com um cesto cheios de biscoitos que não passam do prazo e têm sabor a mil e um colos e dezenas de mimos.